Crónica de Jorge C Ferreira | Nunca estive em Belize

Jorge C Ferreira

 

Nunca estive em Belize
por Jorge C Ferreira

 

Corria o ano de 1992. O mês seria fevereiro ou março. Saímos da Parede. Morávamos num pequeno apartamento perto da estação. Apanhar o comboio era rápido. Fomos nós e as malas. A verdadeira partida para a grande viagem estava prevista para a meia-noite no Cais do Sodré. Estava tudo assim combinado e assim se cumpriu.

Chegámos e pouco depois o Alfa Romeo do J.J. apareceu. Com ele outro J.J.. Arrumámos a tralha levávamos roupa de inverno e verão. O Alfa resfolegou e arrancou. Assim se começa uma viagem com rumo definido. Assim nos fizemos à estrada.

Primeira etapa Barcelona. Seria uma grande caminhada. Muita estrada pela frente. As estradas ainda não eram as que são hoje. A ideia era seguirmos directos até à cidade condal. Fomos comendo quilómetros e a noite. Vimos o amanhecer. Ninguém dormiu. A vontade de chegar era muita. Alguns cafés e pouco mais.

Madrid apareceu já raiava a manhã. Um caminho errado e algum tempo perdido. Continuar e recuperar as voltas dadas a mais. A pressa de chegar era tanta que não nos lembrávamos de descansar. Um dos J.J. tinha a namorada em Barcelona. Tudo se tornava mais urgente. Cada momento perdido parecia um momento não vivido.

Primeiro percalço: Guadalajara. Somos mandados encostar pela polícia. Apanhados pelos radares em excesso de velocidade. A multa tinha de ser paga na hora e em dinheiro. Caso contrário o carro era levado até tudo se resolver. Reunimos as pesetas e pagámos. Mais uns quilómetros por hora e mais valia deixar o carro. O J.J. que não era o dono do carro, olhava para os guardas desconfiado e ia-me dizendo: isto são falsos guardas, estes estão aqui a fazer a féria. Tudo pago, seguimos, agora com mais cuidado. Só parámos em Saragoça para comer. Comemos bem. Demos uma volta e era tempo de continuar. Chegar a Barcelona foi como chegar ao Eldorado. A primeira etapa cumprida. A cidade nas últimas preparações para os jogos olímpicos. Estava quase a chegar o tempo de Fred Mercury e Montserrat Caballé cantarem juntos.

Uma pensão perto das Ramblas. O bairro gótico. Era a nossa terceira vez nesta bela cidade. Foi um tempo bem passado. Os dois J.J. acomodaram-se na casa da namorada de um deles.  Mas passemos ao objectivo seguinte.

Aeroporto (El Prat) e voo directo para Cancun. Cancun ainda estava a aparecer. O México uma miríade. Cheguei a sonhar com Frida Kahlo quando imaginava a viagem. Muitas horas de voo. Chegar ao calor. A diferença horária. Chegar, comer e deitar. Quando acordarmos será outro tempo. Recomeçamos então com o relógio do novo lugar. É o que eu aconselho.

É aí que começa a história que interessa. Alugada uma “Pão de Forma”, fomos percorrer a península do Yucatan. Subimos à pirâmide mais alta. Encontrámo-nos com Mayas e a sua antiga civilização. Ouvimos a sua língua. Fomos à floresta. Vimos praias sem ninguém, as palmeiras a fazerem vénias ao mar. Comemos em restaurantes com as galinhas a passear perto de nós. Fomos a ilhas, visitar tubarões e encontrar águas de cores difíceis de descrever. As areias de um branco imaculado.

Foi aí que um dos J.J. se lembrou que o Belize era logo ali e podíamos lá ir e visitar mais um País. Discutimos, discutimos e nunca chegámos a conclusão alguma.

Foi assim que eu nunca fui ao tão hoje falado Belize.

Foi assim que nunca ali estive. Fica aqui escrito para memória futura.

«Lembro-me dessas vossas viagens. Coisas de gente com pouco tino.»

Fala de Isaurinda.

«Era um tempo de conhecer Mundo. Viajámos com pouco.»

Respondo.

«Pois, e os meninos nas Avós. Vocês gozaram-na bem.»

De novo Isaurinda e vai, a gargalhada solta.

Jorge C Ferreira Outubro/2021(319)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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20 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Nunca estive em Belize”

  1. Moniz Manuela

    Como gosto desse teu espírito aventureiro. São infindáveis e deliciosas as histórias que contas dessas viagens maravilhosas que tens feito por esse mundo fora. Continua a fazê-las e a partilhar connosco. Ao ler-te viajamos também.
    Abraço-te, querido amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Manuela. Viajar é um desígnio. Uma vontade que me persegue. Não sou capaz de resistir. É tão bom ler-te. Abraço

  2. Regina Condé

    Uma vida cheia de tanto vivido. Diz a Isaurinfa que são coisas de gente de pouco tino, mas, adora ouvir o que contas. Sabe que foram importantes esses tempos. Quem sabe um conto a considerares. Abraço grande Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Tempos de viajar com pouco. Arriscar e sonhar. Sempre a aventura dentro de um saco de remendo de pele. Recordações que perduram. Grato por estares aqui. Abraço

  3. Coutinho Eulália Pereira

    Maravilhosa esta crónica.Belas memórias do tempo em que não havia impossíveis. Viagens com amigos. A aventura do desconhecido. Situações desconcertantes, que nos fazem sorrir.
    Tudo descrito de forma única.
    Belize ficou por conhecer. Nunca é tarde amigo.
    Deve ser um país maravilhoso.
    Obrigada por esta viagem.
    Grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Tempos únicos. Tempos que não se repetem. Tudo será diferente agora. Coisas vividas no tempo certo. Será que o Rendeiro está em Belize? Gosto de a ver aqui. Abraço

  4. Isabel Soares

    Uma narrativa de memórias sobre um trajecto e seus lugares. Uma aventura muito bem escrita,cujas vivências incorporam o ser que é. Há memórias registadas na nossa identidade. Lugares belos,com a companhia de amigos,que não esquecemos e nos alimentam.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Somos a soma de tudo o que vivemos. Há coisas que de tão marcantes se vão mantendo vivas em nós. Viver a vida. Abraço grande

  5. Maria Luiza Caetano Caetano

    Maravilhosa a sua forma de contar, tão bela história. Gosto muito de escutar, histórias verdadeiras, a aventura de uma viagem a Cancun. Naquela altura era um destino apetecível. Outras foram acontecendo. Viajar é sua grande paixão, por isso conhece tanto mundo. Lembro que fez um cruzeiro e o nascimento de um livro, onde tão bem escreve, sobre essa grande viagem. Livro que tantas vezes abro e me deixo levar, ao sabor da maré. Obrigada, querido escritor por partilhar tantas coisas, que valem a pena. É bom aprender. Sempre. Abraço imenso.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. É tão bom ouvir as suas opiniões sobre estas minhas aventuras. Aventuras que comecei depois de cumprir o seviço militar. Uma necessidade imensa de sair deste país marasmo. Obrigado pela sua presença constante. Abraço do tamanho do mundo.

  6. António Feliciano de Oliveira Pereira

    Uma aventura perene e indelével!
    Gostei!
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. Um comentário curto e perfeito. A sua presença aqui é, para mim, deveras importante. Abraço grande

  7. Isabel Pires

    Também nunca estive em Belize, tão perto de mim como é que não dei por ele. Madrid, Barcelona, Cancun mas nunca estive em Belize.
    Obrigada pelo texto, por recordar, por recordar-me. Abraço forte amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Nunca estivemos. Será que o banqueiro que fugiu está por lá? Somos, também, as nossas recordações. Abraço

  8. Cristina Ferreira

    Confesso que até a estas últimas fugas, upsss notícias, não fazia a mínima ideia de onde ficava. Mas tu, mestre , tu estás sempre à frente. Não chegaste a conhecer, mas quase e hoje faz parte de uma memória bonita e pura de uma de tantas viagens em que o objetivo principal era a felicidade plena e não uma fuga milionária planeada.
    Feliz pelas tuas viagens mestre. Pelas aventuras que viveste. E pelo Dom que tens em transpores para o papel.
    Feliz por perceber que esse bichinho continua a viver em ti.
    Agora não precisas de deixar os meninos com as avós. Agora tens o privilégio de poder ter a companhia do teu neto para tomar conta de ti (rsrsrs)
    Beijinhos

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Tenho saudades daquelas desvairadas aventuras. Por vezes quase a loucura. Tudo começou muitos anos antes. Conhecer o Mundo, as pessoas, o proibido. Um tempo vivido no seu tempo. Abraço

  9. Cecília Vicente

    Que aventura a vossa, estória para recontar agora nos dias frios quando todos puderem estar à mesa, interessante ouvir lembranças e memórias na primeira pessoa, certamente haverá um Indiana Jones a querer seguir as mesmas odisseias, o neto, estou a vê-lo de mochila e bússola por caminhos e lugares feitos pelo aventureiro avô, certamente surgirá um livro fotográfico tendo o avô e restantes personagens que sempre o acompanharam, uma viagem pelo mundo descobrindo essencialmente o pulsar de outras gentes com o coração igual ao nosso, só ele entenderá, só ele conhecerá o mundo há altura dos seus sonhos… tal qual o seu avô. Obrigada, meu sempre amigo. Abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. O meu grande sonho era conseguir fazer uma volta ao mundo com o meu neto. Já lhe mostrei algum mundo. Ter mundo é muito importante. Vamos sonhar enquanto fôr de borla. Abraço grande.

  10. Isabel Campos

    Crónica para memória futura de uma vida cheia.
    A Isaurinda, essa pessoa maravilhosa, sempre dentro da história. Privilégios do tempo, do tanto tempo.
    Muito agradável!!!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Um tempo que partilha comigo. É tão bom estares aqui. Espero que a vida continue. Beijinho

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